«Às vezes encontramo-nos com a cabeça nas mãos. Tudo o
que poderia ter corrido bem correu mal. O mundo, que era igual à vida,
afasta-se de repente. Distancia-se e continua a existir, como se nada tivesse a
ver ou a haver connosco, como se fizesse questão de mostrar a independência
dele, mundo, que não existe só porque nos damos conta dele. A má notícia é má,
mas a pior, para quem cá está, é a pessoal. A minha pessoa é a Maria João e a
Maria João passa mal. Nem o amor nem a sabedoria médica a podem salvar. Só uma
conjunção das duas coisas, mais um acrescento de milagre. O cabrão do cancro
alastra-se. Exterminado no pulmão ou na mama, foge para o cérebro, onde se
refugia e cresce. Forma uma força da morte, aproveitando as barreiras antigas
entre o sangue e o cérebro, que infiltra conforme lhe apetece. Hoje, domingo, é
o último dia em que estaremos juntos, dois amores, felizes há quase vinte anos.
Amanhã, logo às nove da manhã, estaremos na consulta dos excelentes
neurocirurgiões do Hospital de Santa Maria, onde nos avisarão das complicações
possíveis. Obama deveria inspirar-se na perfeição clínica e humana do serviço
de saúde português e francês. Mas a dor não diminui. Nem a tristeza abranda.
Vai morrer o meu amor. Não vai. Como o meu amor por ela, nunca há-de morrer. As
coisas acontecem sem acontecer o pensamento nelas. A alma, o coração e a cabeça
são coisas diferentes. Que se dão bem. E são amigas. E deixam de ser quando
morrem».
Miguel Esteves Cardoso
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